sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Me espere na Sala de Espera

Foi a sensação mais fria e morna que eu já tive. A pior dor que se pode suportar (ou quase não suportar). Um grito desesperado ecoava em minha cabeça, todos que estavam naquela sala me pareciam tão mortos quanto o homem que estava ali, sobre a mesa. Minha respiração era tão forte que todos ao redor pareciam ouví-la também e meu coração, era como se estivesse sendo esmagado, sufocado e minha alma, de tão pesada parecia contraí-lo mais ainda tornando suas batidas lentas, intermináveis. Aquele era o pior dia da minha vida e aquela a primeira pessoa que morria em minhas mãos. Um completo desconhecido, com mãe, esposa e dois filhos na sala de espera. Eu não queria parar, mas o desfibrilador fora arrancado de minhas mãos; por pessoas menos esperançosas que eu, talvez. Ou mais racionais - pelo menos naquele momento. Então eu tentei reanimar seu coração com minhas mãos. Aulas e aulas, teses, livros, eu sabia quase tudo, tinha lido muito. Mas nada jamais fora tão real quanto aquele momento. O coração e a vida daquele inocente protagonista de um trágico acidente estavam em minhas mãos e foi nelas que ele bateu pela última vez. Como num último fôlego antes de mergulhar, ele agora mergulhava, para sempre. Eu só não sabia como traduzir o fim de uma vida para aquelas duas mulheres aflitas na sala mais fria do hospital. Eu podia sentir, por dentro eu estava aos prantos, apavorada, derrotada. A primeira vez em anos de profissão. Talvez fosse mera sorte, mas eu sabia, todos sabiam, um dia chegaria o momento de dizer "Sinto muito" a alguém. Quando voltei à realidade o único som que se ouvia era do monitor que momentos antes marcava as batidas do coração do estranho, mas agora ensurdecia a mim com um longo e lancinante "piiiiiiiiiiiii" que de repente sessou, uma enfermeira - a única ainda na sala além dele e de mim - desligou o aparelho que telepaticamente me dizia "Você não conseguiu dessa vez". Possivelmente o outro médico que me acompanhou durante a cirurgia ou até mesmo algum dos residentes tenham me dito algo positivo ou animador, mas eu não prestei atenção. Só tentava me recompor para informá-las, a elas, tão cheias de fé. Eu não estava preparada para encará-las mas, foi somente alguns anos depois que me dei conta de que nunca se está preparada. E eu fui. Abondonei minhas luvas usadas na sala e fui. Aquele corredor nunca foi tão longo e frio como naquele fim de noite. Enfim, a sala de espera e lá estavam elas, lado a lado com olhares distantes; apreensivos de mãe e aflitos de esposa. Os dois pequenos meninos brincavam por perto sem nem imaginar o que estava por vir. Logo nos encontramos, ou melhor, as duas anciosas vieram ao meu encontro:
- E então doutora? perguntou a ainda jovem esposa com a voz embargada, talvez até esperando um notícia não tão boa; uma paralisia, sequelas ou algo assim.

- Eu perdi meu marido há 2 anos, meu filho é tudo que eu tenho, mas eu sou forte, não nos esconda nada. Disse a senhora com os olhos tristes e doces; cansados, mas ainda assim dóceis.

Criei coragem:
- As lesões eram muitas, e muito sérias. O cérebro ficou sem oxigênio por tempo demais, as veias que levam o sangue do coração para o resto do corpo foram muito danificadas, além do pulmão que sofreu perfurações. Ele teve duas paradas cardíacas - o choro da esposa se intensificou me causando grande desconforto e sensibilidade - Nós fizemos todo o possível, persistimos mas [eu parei por alguns instantes até que todas aquelas informações fossem digeridas e por fim...] Eu sinto muito, nós o perdemos. Eu realmente sinto muito [após dizer isso me senti inútil, é o que todos eles sempre dizem, no entanto não havia mais nada que eu pudesse dizer, era toda a minha sinceridade ali naquela sala].

E essa, foi a pior cena da minha vida
Aquela mulher que momentos antes demonstrava, apesar da fragilidade, uma grande força, estava agora desolada e seus olhos azuis escureceram e pareciam vazios, tão fúnebres quanto os de seu marido ao chegar ao hospital. Ela desabou ao chão; gritava, com a voz rouca, seu choro desesperado me fez perder a respiração. E a senhora permanecia imóvel à minha frente, revivendo o mesmo sentimento de dois anos antes. Muda, desolada, petrificada. E eu já nada podia fazer, nem sequer consolá-las (nem ao menos sabia como fazê-lo), além do que eu tinha outra cirurgia marcada para logo mais. [câncer]. Eu naquele momento desejei que os raios de sol que entravam aos poucos pela janela me cegassem, que a voz dos meninos brincando me ensurdecessem, eu só queria me tornar invisível como a chuva que caía fina lá fora. Eu sofri, chorei, pra dentro, comigo, sozinha. Havia me tornado uma máquina.

Um comentário:

A. disse...

Essa primeira fase me lembrou tanto a Bella, de Crepúsculo.

E esse texto está ótimo, sério. Estou boquiaberta.

Beijinhos